27.10.10

Um olhar no lotação

Atenção! Antes de começar a ler, saiba: mesmo que pareça, esse texto não fala sobre você.

Tenho uma amiga que tem dentre os passatempos prediletos escutar conversa de ônibus. Certa vez resolvi experimentar e me sentei no banco próximo à porta num lotação repleta de estudantes de uma conhecida universidade. Você, leitor, deve conhecer. Um rapaz e uma moça conversavam sobre modelos de tênis, não me chamou atenção. Dois meninos, aparentemente nada estudiosos, falavam sobre como era difícil assistir aula de um professor com nome de marca de perfume. Uma moça roia as unhas enquanto a outra engatava um conto maçante sobre sua trajetória ao longo dos regimes emagrecedores. Essas coisas.
No meio dessas vozes todas, gostei de uma suave, quase fina, de uma mocinha de cabelos ondulados escorada na porta do ônibus. Ela tinha a pele bonita, mas visivelmente cansada do longo dia de trabalho e, além de uma pasta cheia de Xerox, ela trazia consigo uma enorme bolsa que, segundo ela, “estava um chumbo” de tão pesada. A menina falava com dois rapazes, certamente do mesmo curso que ela faz, sobre como é difícil conciliar trabalho com faculdade. Ela era pequenina e frágil, mas sua rotina era de gente grande. Pelo que consegui ouvir, ela levantava às seis da manhã, pegava condução para estar às oito horas no trabalho. Ela trabalhava numa loja de roupas e não passava sequer um dia sem tomar xingo do patrão. O expediente fechava às dezoito e ela negociou para sair uns minutinhos mais cedo e conseguir pegar ônibus a tempo de chegar no restaurante universitário antes de começar a aula. Ainda tinha que ir para casa e fazer os trabalhos que a faculdade carinhosamente presenteia. Acredite, a leitura desse período é muito menos cansativa que a rotina da moça.
Ela não era empolgada, nem parecia estar feliz por ter acabado um dia de trabalho e, finalmente, estar indo para a faculdade. Ela estava “de saco cheio disso tudo”, como falou com os olhos mais molhados que o convencional. Ela estava cansada, em pé no ônibus, com bolsa de chumbo, pasta na mão, bracinho enroscado na porta e um olhar no fundo de quem pede silenciosamente gritando por paz, por calmaria. Os amigos dela ficaram quietos olhando ela contar sobre como não havia atingido nota em determinada matéria. Penalizados, eles também viviam rotinas estafantes – ou só quiseram ser compassivos.
Eu sei que nunca mais vi exatamente essa menina, mas vi diversos olhares dela por aí. Encontrei-os no olhar da minha amiga que incentivou esse hobby, no do namorado, no cobrador do ônibus. No espelho. Todo mundo pedindo ajuda, pedindo clemência. Querendo um tempo para descansar, repousar. Deixar de fazer essas coisas todas que fazemos todos os dias sem vontade alguma, ter tempo novamente. Esse olhar tão triste, tão enfastiado, é o olhar que estampa a cara de muita gente que anda pelos coletivos, pelos terminais, hospitais e corredores da universidade. É o olhar da mocinha da voz doce, o olhar daqueles que não têm tempo e que estão sentindo seus corações virarem chumbo, tal qual é o peso de seus fardos. É o olhar de quem quer sair por aí gritando feito louco por um minuto de paz, mas está ocupado demais digitando um artigo para faculdade. É o olhar da gente para a nossa vida.


Luciana de Castro

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