2.12.09

O Grito


Há quem diga que Zé Firmino era ocupado demais. Mas ele não era.
Vivia andando pra lá e pra cá com uma pastinha de couro embaixo dos braços, não havia papel dentro - ninguém sabia disso. Todo dia uma gravatinha azul e a camisa branca já amarelada pelo tempo. "Um homem distinto", diziam.
Zé Firmino morava na Rua Pombos, cujo nome só lhe trazia desgosto. De seu apartamento mofado, via os carros lá embaixo enfileirados e buzinantes, agradecia por só ter bicicleta. Bebia o café sempre vendo as pessoas do prédio da frente acordarem e tomarem o desjejum antes de ir ao trabalho. Sentia-se relaxado. Zé Firmino não trabalhava. Em sua pasta havia sempre uma caneta e só. Saía por aí desenhando em qualquer canto que achava, fosse muro ou fosse pedra,
Numa quinta-feira alaranjada acordou estranho. Deve ser porque o telefone do vizinho tocou. Zé Firmino nunca teve vizinho no andar de cima cima. Zé Firmino nunca falara ao telefone e se lembrara disso. Acho mesmo é que Zé Firmino não falava, mas ele não conseguia fazer o teste... Bem podia ser sua mente, não os ouvidos.
Foi quando enumerou que não conversava desde o nascimento, mas não lembrava ao certo se havia nascido. Com medo de ser invenção do tempo, desceu as escadas correndo em busca de um telefone público. Sabemos como fazer uma ligação, Zé Firmino não sabia.
Tirou do gancho e esperou que alguém dissesse algo. Sem sucesso. O zunido lhe foi tão estranho que soltou o aparelho no ar, ficando o negócio suspenso pelo cabo. Tentou novamente em vários orelhões pelo caminho. Nada de êxito.
Foi ficando desesperado. "Não sou gente", pensava. Será que era? Zé Firmino viu uma garotinha desenhando com giz na calçada quando realizou que estava sem a distinta pastinha embaixo do braço. Foi subindo um ar quente às ventas, um fervilhão pelo estômago, uma coisa ruim. Saiu correndo rumo ao prédio novamente. "Uma caneta", pensava.
Subiu as escadas tropeçando, arfante, caiu no último degrau. Levantou-se instantaneamente e foi procurar a pasta. Revirou a casa. Duas vezes. Nem sinal da pastinha. O jeito ruim foi crescendo-lhe de novo. Sem palavras, sem caneta, sem pastinha, sem telefone. Mordeu os lábios arrancando sangue vivo, cerrou os punhos e lançou-os contra a parede. "Que diabos é isso?", pensava. Era a raiva que lhe fervia, um mal estar, calor na testa.
Chegou ao pé da janela ainda vertiginoso. Reclinando o corpo todo para a janela, sentiu um ar seco e cinzento entrando forçosamente pelas narinas. Palavras, caneta, pastinha, telefone. "Será que sou ontem?", pensou também. E o Coisa Ruim ou Santo Deus queimando-lhe em brasas finas por dentro. Não foi se aguentando, sofrendo em convulsão sã, debateu-se em pé. Botou um braço para fora, sacudiu ao vento e mediu com os olhos o que podia o esperar lá embaixo. Sentiu medo. Tentou mais uma vez achar a pasta. Desceu as escadas e percorreu o caminho de novo. Viu a menininha e o graveto, os carros, a noite chegando.
Eram 19h45 quando subiu pela última vez. Abrindo a porta num soco, foi à janela e fez o que deveria ser feito:
Fechando os olhos fortemente, estufou o peito, deixou metade do corpo para fora do apartamento, angulou a cabeça rumo à Lua e, num vomitar, gritou. Gritou como se jamais no mundo houvesse tido grito.

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